Como um contrabando em 1727 fez o Brasil dominar o mundo do café
Em 1727, o sargento-mor Francisco de Melo Palheta trouxe ilegalmente mudas de café da Guiana Francesa para o Brasil, dando início ao ciclo cafeeiro que transformou a economia e a cultura nacional.
Antes de Palheta, o café já havia cruzado oceanos. Originário da Etiópia, o grão viajou para o Iêmen, daí para a Arábia e, finalmente, chegou à Europa pelas mãos de comerciantes venezianos. No início do século XVIII, o café era um produto luxuoso, consumido com entusiasmo nas cortes europeias e nas colônias americanas. Os países que possuíam mudas — como França, Países Baixos e suas colônias — guardavam-nas como tesouros estratégicos, pois o café era uma das mercadorias mais valiosas do comércio internacional.
O grão chegou à América do Sul inicialmente pelo Suriname, então colônia holandesa. De lá, passou para a Guiana Francesa, onde o governador de Caiena conseguiu algumas sementes de um francês chamado Morgues, semeando-as em seu jardim. As plantas prosperaram e se tornaram base de uma produção controlada pelos franceses. Portugal, por sua vez, ainda não possuía nenhuma muda — e dependia do comércio externo para obter o café que abastecia suas elites.
Em 1722, Francisco de Melo Palheta partiu de Belém do Pará comandando uma expedição pelo interior da Amazônia, subindo o curso do Rio Madeira e depois o Rio Mamoré, até alcançar a aldeia de Santa Cruz de Cajajuvas, uma missão jesuítica no Vice-Reino do Peru. Essa viagem consolidou sua experiência como explorador e diplomata, preparando-o para uma missão ainda mais audaciosa.
Em 1727, o governador e capitão-general do Maranhão, João da Maia da Gama, designou Palheta para viajar à Guiana Francesa com o objetivo de restabelecer os limites fronteiriços fixados pelo Tratado de Utrecht de 1713, que definiam o rio Oiapoque como fronteira entre os domínios portugueses e franceses. Mas havia uma missão secreta, confidenciada apenas aos mais próximos: trazer sementes e mudas de café para o território português.
A tarefa era arriscada. As colônias francesas proibiam a exportação de plantas de café sob pena severa, pois queriam preservar o monopólio do cultivo. Palheta, no entanto, não era apenas militar; era também diplomata e estrategista. Ao chegar a Cayenne, estabeleceu boas relações com o governador local e, segundo relatos lendários, conquistou a simpatia — e talvez o coração — de Madame D’Orvilliers, esposa do governador francês.
Na despedida, ela teria lhe oferecido um buquê de flores, e, escondidas entre as pétalas, estavam as preciosas sementes e mudas de café que mudariam o destino do Brasil. O gesto de Madame D’Orvilliers tornou-se um dos episódios mais simbólicos da história colonial: um ato de gentileza e amor transformado em revolução agrícola.
De volta ao Pará, Palheta plantou as primeiras mudas nas proximidades de Belém. O sucesso do cultivo foi imediato, e logo as sementes foram distribuídas por outras capitanias. O café se espalhou pelo Nordeste, pelo Vale do Paraíba e, finalmente, pelo Oeste Paulista, onde encontrou as condições ideais de solo e clima. No século XIX, o café se consolidou como a principal riqueza do Brasil, responsável por quase 80% das exportações nacionais e pelo surgimento de cidades, ferrovias e fortunas.
O contrabando de 1727 se transformou em um dos capítulos mais decisivos da história econômica brasileira. De um gesto clandestino nasceu o Ciclo do Café, que definiu a política, a cultura e até a identidade nacional por mais de um século. Foi o café que financiou a urbanização do Rio de Janeiro, o desenvolvimento do porto de Santos e a construção das primeiras ferrovias.
A importância de Francisco de Melo Palheta atravessou séculos. Sua biografia foi retratada no documentário “Sementes de Ouro Negro – a história de Francisco de Melo Palheta”, dirigido pelo cineasta português José Borges em parceria com o jornalista brasileiro Nélio Palheta. O filme, com 54 minutos de duração, mostra cenas emblemáticas da Cafeteria Colombo do Porto e da cidade do Rio de Janeiro, retratando como um ato de coragem individual transformou a história econômica de dois continentes. O projeto foi financiado pela RTP (Rádio e Televisão de Portugal), com apoio da Prefeitura de Vigia de Nazaré, no Pará.
Hoje, o Brasil é o maior produtor e exportador de café do mundo, e o legado de Palheta continua vivo em cada xícara. O militar paraense não apenas introduziu uma cultura agrícola — ele deu origem a um modo de vida, a uma economia e a uma tradição que atravessa gerações.
Este é um conteúdo comentado que une fatos históricos, documentação e narrativa interpretativa, oferecendo uma leitura rica e acessível para estudantes, pesquisadores e amantes da história. Ao compreender a jornada de Francisco de Melo Palheta, compreendemos também o poder transformador de uma ideia — e como, às vezes, um simples buquê pode carregar o destino de uma nação inteira.
📘 Nota histórica:
Os registros da missão de Francisco de Melo Palheta estão preservados em documentos da Biblioteca Nacional do Brasil, do Instituto Brasileiro do Café e em obras clássicas da historiografia, como as de Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Embora o detalhe romântico do buquê tenha virado lenda popular, os fatos essenciais — a missão, o contrabando e a introdução do café — são reconhecidos como autênticos pela historiografia brasileira.

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