Complexo Pupileira: o cemitério de africanos e marginalizados que emerge do esquecimento em Salvador

Descoberta arqueológica no Complexo Pupileira revela mais de 100 mil corpos de pessoas escravizadas e marginalizadas entre os séculos XVII e XIX. O terreno, hoje estacionamento, se transforma em símbolo de memória histórica em Salvador.

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Em Salvador, no bairro de Nazaré, encontra-se o terreno da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, no complexo conhecido como Complexo Pupileira, que durante aproximadamente 150 a 175 anos funcionou como local de sepultamento de pessoas à margem dos enterros convencionais. Pesquisas arqueológicas iniciadas em meados de 2024, com destaque para maio de 2025, revelaram que esse terreno, hoje ocupado por um estacionamento, abriga vestígios de um antigo cemitério que chegou a conter mais de 100 mil corpos, principalmente de pessoas escravizadas trazidas da África, mas também de indígenas, pobres, não batizados, excomungados e outros segmentos marginalizados da sociedade da época. 


A escolha desse local para sepultamentos reflete a lógica colonial de segregação social, em que certas pessoas recebiam tratamento distinto, inclusive na sepultura, e também a proximidade com áreas urbanas da época, como o antigo Campo da Pólvora, favorecendo que se utilizassem terrenos que lhes eram destinados ou menos valorizados para a sociedade dominante.

O uso do cemitério teria iniciado no final do século XVII ou início do XVIII e se estendido até meados do século XIX, quando a inauguração do Cemitério Campo Santo mudou as práticas funerárias e indicou a transição para um modelo mais formalizado de sepultamento. Durante décadas, o terreno foi progressivamente alterado, com aterros, construções e, por fim, a transformação em estacionamento, o que contribuiu para o esquecimento e a invisibilidade histórica do sítio.

A redescoberta do cemitério foi conduzida por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, incluindo a arquiteta urbanista Silvana Olivieri, com apoio de arqueólogos especializados, que identificaram ossadas humanas a cerca de 2,7 a 3 metros de profundidade, em solo ácido e úmido. 


A importância do achado levou o Ministério Público da Bahia a recomendar a suspensão imediata do uso do estacionamento e solicitou que o local fosse reconhecido oficialmente como Sítio Arqueológico Cemitério dos Africanos. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) emitiu parecer técnico afirmando que qualquer intervenção no terreno requer autorização prévia, reafirmando o valor cultural e histórico da área.

O fato de o espaço ter sido utilizado como estacionamento mesmo diante de indícios arqueológicos evidencia falhas institucionais e lacunas no reconhecimento da memória histórica. A invisibilidade prolongada do local, somada à falta de documentação pública adequada, contribuiu para que essa parte importante da história permanecesse silenciada. 


Além disso, a inclusão das comunidades diretamente afetadas — descendentes de africanos, religiões de matriz africana e movimentos culturais — no diálogo sobre o futuro do sítio ainda é insuficiente, reforçando a necessidade de ações de preservação e reparação simbólica.

O Complexo Pupileira nos ensina que a memória de pessoas marginalizadas pode estar literalmente sob nossos pés sem que a paisagem urbana denuncie sua presença. Ele demonstra como lugares que abrigaram práticas ou instituições invisibilizadas são frequentemente reutilizados e apagados, e reforça a urgência de transformar o reconhecimento arqueológico em preservação física, memorialização e diálogo social. 


Hoje, o terreno da Pupileira deixa de ser apenas um estacionamento para se tornar um símbolo de memória, de reconstrução histórica e de compromisso com o passado, lembrando que a história de Salvador e do Brasil inclui corpos e vidas que por muito tempo foram invisíveis, mas que agora emergem como parte indispensável da narrativa coletiva.




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