O surgimento do Comando Vermelho

O Surgimento do Comando Vermelho: uma Análise Documental, Política e Sociológica da Construção da Violência e do Poder nas Margens do Estado Brasileiro


A emergência do Comando Vermelho (CV) constitui um capítulo fundamental na história da violência urbana brasileira e um marco na formação de organizações criminais contemporâneas na América Latina. Seu desenvolvimento é inseparável das condições políticas, sociais, carcerárias e econômicas do país, em especial durante o período da ditadura militar e nos anos subsequentes de transição democrática. A formação do CV é mais do que um fenômeno criminal; trata-se de um fenômeno político e social profundamente ligado às falhas históricas do Estado brasileiro, à desigualdade estrutural, ao encarceramento seletivo e à construção de territórios urbanos de exclusão.

Este trabalho busca oferecer uma reflexão densa, fundamentada e ampliada, articulando:

Além disso, desenvolve-se uma narrativa reflexiva, em tom documental, com “frases de efeito” que funcionam como pausas interpretativas e sínteses críticas.

Nas franjas onde a lei chega apenas com a mira, nasce a política da sobrevivência — e com ela, o comando das sombras.


1. Ditadura Militar, Repressão e o Laboratório da Ilha Grande

O Comando Vermelho nasce na década de 1970, no contexto do regime militar (1964-1985), período marcado por intensa repressão política, vigilância social e militarização da vida pública. As prisões políticas tornaram-se centros de tortura, disciplinamento e controle, e, de forma estratégica ou negligente, prisioneiros políticos foram colocados junto com presos comuns em instituições como a Ilha Grande, no Rio de Janeiro.

A literatura especializada aponta que, nesse ambiente, formaram-se redes de solidariedade interna e trocas de práticas organizacionais entre ativistas de esquerda e presos comuns. O CV emerge inicialmente sob o lema informal de “paz, justiça e liberdade” — uma síntese rudimentar de noções de solidariedade carcerária e autodefesa frente à violência estatal.

Tal como Michel Foucault descreve, as prisões modernas não extinguem o crime, mas o organizam, reproduzem e institucionalizam. A maquinaria disciplinar não apenas pune; ela produz sujeitos e formas específicas de resistência e controle. No Brasil, esse processo foi potencializado por uma política repressiva brutal, falta de políticas de ressocialização e estruturas carcerárias superlotadas e violentas.

Quando um Estado tenta enterrar ideias em celas, muitas vezes planta organizações.

Essa dinâmica evidencia que a formação do CV não se explica apenas pela criminalidade individual, mas pelo encontro entre violência estatal, ideologias de resistência e necessidade de proteção coletiva em ambientes de opressão máxima.


2. Prisão: Campo Disciplinar, Espaço de Resistência e Matriz do Crime Organizado

A prisão como espaço de pedagogia criminal não é fenômeno exclusivo do Brasil, mas assume características particulares aqui. Foucault descreve o papel disciplinar das prisões como parte de uma política moderna de controle social. No entanto, no Brasil, esse aparato disciplinar convive com ausência de políticas penais estruturadas, tortura, abandono e a lógica de guerra interna.

Pesquisadores como Michel Misse e Alba Zaluar mostram que o sistema penal brasileiro opera sob lógica seletiva e desigual, onde os corpos pobres — majoritariamente negros e periféricos — constituem o principal alvo.

A mesma cela que humilha também ensina a resistir; onde a lei abandona, a facção organiza.

O Brasil, portanto, não apenas falhou em impedir a formação do crime organizado — contribuiu diretamente para sua formação e consolidação.


3. As Favelas e a Construção Social do Inimigo Interno

O surgimento do Comando Vermelho no pós-prisão ocorre em um contexto urbano profundamente desigual. As favelas do Rio de Janeiro, desde o início do século XX, foram alvos de políticas higienistas, remoções forçadas, militarização e estigmatização social. Esses territórios tornaram-se laboratórios da presença seletiva e violenta do Estado, e também de sua ausência estrutural no campo dos direitos.

Autores como Luiz Eduardo Soares e Vera Malaguti Batista destacam que o morador de favela é frequentemente construído pelo discurso hegemônico como suspeito, potencial criminoso ou “inimigo social”.

No Brasil, o CEP muitas vezes define quem merece viver — e quem pode morrer.

A ausência de políticas públicas efetivas, combinada à repressão armada, produziu um ambiente propício à instalação e expansão de organizações armadas como o CV, que passaram a ocupar funções sociais de Estado:

  • Mediação de conflitos

  • Distribuição de “justiça paralela”

  • Assistência social pontual

  • Proteção territorial

Essa substituição do Estado cria uma forma paradoxal de soberania criminal.


4. Biopolítica, Necropolítica e as Políticas da Vida e da Morte

Para Foucault, o Estado moderno administra vidas. Para Mbembe, sociedades coloniais e pós-coloniais administram também a morte. A necropolítica evidencia regimes onde populações inteiras são expostas à morte como forma de governo — especialmente populações racializadas, pobres e periféricas.

No Brasil, políticas de segurança muitas vezes produzem morte em vez de proteção — morte física, civil, política e social. A guerra às drogas e as incursões policiais em favelas expressam um modelo necropolítico.

Se um Estado decide onde a vida é menos vida, ele já escolheu quem pode morrer.

O Comando Vermelho, nesse sentido, não substitui o Estado — ele disputa com o Estado o controle sobre corpos e territórios, produzindo sua própria forma de biopoder e necropoder.


5. Economia Política do Crime e do Tráfico

O tráfico de drogas se tornou, no Brasil, mais do que comércio ilegal: tornou-se mecanismo de inclusão econômica em territórios marginalizados. Jovens sem acesso à educação, emprego formal ou mobilidade social encontram no crime uma via de sobrevivência ou ascensão simbólica e material.

Autores como Loïc Wacquant e Zaluar analisam como as economias ilegais florescem onde o Estado falha na inclusão econômica. A violência armada emerge como forma de proteção de economias ilegais e de afirmação política.

Em um país onde o Estado não garante futuro, o crime oferece o que a esperança não entrega.

A partir dos anos 1980, o Comando Vermelho expande-se territorialmente e se torna referência na estrutura do tráfico no Rio de Janeiro, em meio à crise urbana, desindustrialização e colapso de políticas sociais.


6. Estado Fraturado, Políticas Punitivas e Produção da Violência

A modernização democrática não significou democratização plena da segurança pública. A literatura especializada aponta que o Brasil manteve estrutura policial militarizada, lógica bélica e persistência da doutrina de inimigos internos.

O Estado fraturado convive com duas cidadanias:

  • A cidadania plena, protegida e atendida

  • A cidadania seletiva, vigiada e punida

A violência que o Estado ignora de dia, ele combate com fuzil à noite.

A guerra às drogas ampliou prisões, violência e letalidade, enquanto pouco afetou redes internacionais de fornecimento e circulação.

O resultado: encarceramento massivo e fortalecimento das facções — especialmente do CV e posteriormente do PCC.


7. O Papel da Mídia: Medo, Moralização e Legitimidade da Força

A mídia transforma violência em espetáculo e legitima ações estatais excepcionais. Como discutem Soares e Cano, o discurso do medo mobiliza apoio a políticas repressivas e reduz o debate a “bandido bom é bandido morto”.

Quando a opinião pública se alimenta de medo, a política pública se arma de ferro.

Essa construção simbólica reforça o ciclo da necropolítica urbana.


8. Facção, Território e Controle Social

O CV opera com lógica territorial: cada comunidade é espaço político e militar a ser conquistado e mantido. As facções organizam:

  • Controle de circulação

  • Armas e disciplina interna

  • Normas e punições

  • Rede de informantes

  • Política simbólica e estética (armas, siglas, “bandeiras”)

Em muitos territórios, a facção substitui o Estado em sua forma mínima — controle e disciplina — e isso evidencia um tipo de soberania paralela.

Quando a lei é distante e a arma é próxima, a ordem passa a ter outro nome.


9. Entre Biopoder e Necropoder: a População em Suspensão

A população favelada vive entre dois regimes: a violência estatal e a violência faccionada. Ela não é plenamente sujeita de direitos nem totalmente livre. Vive sob regime de exceção territorial permanente.

Viver na favela não é escolher um lado — é sobreviver entre dois exércitos.

A cidadania diferencial torna-se evidente na diferença de tratamento entre bairros ricos e pobres, negros e brancos, “centro” e “periferia”.


10. Democracia Inacabada e o Ciclo da Violência

O Comando Vermelho não é anomalia do sistema brasileiro — é produto histórico dele. Resultado de:

  • Ditadura militar

  • Política penal desumana

  • Desigualdade estrutural

  • Falhas educativas e sociais

  • Racismo estrutural

  • Estigmatização das periferias

  • Militarização da segurança pública

O futuro da segurança e da democracia no Brasil depende de romper esse ciclo pela via social, não apenas punitiva.

A arma pode conter o crime por um dia; o direito pode impedir que ele nasça.



O estudo da gênese do Comando Vermelho revela não apenas o nascimento de uma organização criminosa, mas a face mais explícita das contradições brasileiras. É impossível compreender o crime organizado sem compreender o Estado, e é impossível compreender o Estado sem enfrentar as raízes da desigualdade, da violência institucional e da exclusão histórica.

A superação desse cenário exige:

  • Educação de qualidade

  • Políticas sociais consistentes

  • Reforma profunda do sistema penal e policial

  • Urbanismo inclusivo

  • Direitos iguais, não apenas leis iguais

Em síntese:

Se a democracia não chega nos becos, o autoritarismo volta pelas ruas.

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