Reportagem: 117 fuzis no Méier e 93 no Alemão revelam silêncio e violência no Rio de Janeiro
A maior apreensão de fuzis da história do Rio ocorreu em 2019 no Méier, mas a megaoperação de 2025 nos Complexos do Alemão e da Penha trouxe mortes e recorde anual de apreensões, revelando a seletividade da memória coletiva na segurança pública.
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| Polícia concluiu a contagem das armas encontradas atribuídas a Ronnie Lessa no Méier — Foto: Divulgação |
Em março de 2019, uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro resultou na descoberta de 117 fuzis M-16 incompletos em uma casa no bairro do Méier, Zona Norte da capital. As peças, encontradas cuidadosamente embaladas, estavam prontas para montagem e uso. Era, até então, a maior apreensão de fuzis já registrada na história do estado. O episódio ocorreu em meio às investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, o que conferiu ainda mais peso político e simbólico à ação.
A casa onde o arsenal foi encontrado pertencia a um homem apontado como amigo de Ronnie Lessa, ex-policial militar acusado de ser o autor dos disparos que mataram Marielle e Anderson. Lessa, por sua vez, era morador do condomínio Vivendas da Barra, o mesmo onde vivia Jair Bolsonaro, à época presidente da República. Essa coincidência geográfica foi o suficiente para gerar um turbilhão de teorias, suspeitas e discursos. A narrativa que emergiu nas redes e em parte da imprensa era de que, diante do possível constrangimento político, o caso teria sido abafado.
Nos dias que se seguiram à operação, manchetes estampavam o número impressionante de fuzis apreendidos. No entanto, à medida que o tempo passava, o caso parecia desaparecer do noticiário. Nenhuma coletiva expressiva, poucas informações sobre a origem das armas e ainda menos detalhes sobre o destino das investigações. A apreensão que deveria simbolizar um duro golpe contra o tráfico internacional de armas transformou-se, lentamente, em um assunto incômodo, esquecido entre as páginas de um inquérito.
O silêncio que envolveu a descoberta dos 117 fuzis do Méier contrasta com o alarde que normalmente acompanha operações de grande porte. A polícia chegou a informar que se tratavam de armas desmontadas, o que tecnicamente as colocaria em categoria diferente de armamento pronto para uso. Ainda assim, especialistas em segurança pública afirmaram que o número de peças encontradas indicava uma operação criminosa de alta escala, com conexão internacional e estrutura logística sofisticada.
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| Megaoperação no Alemão e na Penha tem apreensão de 93 fuzis e faz número anual bater 686 |
Seis anos depois, em 28 de outubro de 2025, uma nova megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha trouxe de volta a pauta das apreensões. A ação resultou na coleta de entre 75 e 93 fuzis, conforme diferentes fontes jornalísticas, e elevou o total de armas retiradas de circulação no Rio para 686 apenas naquele ano — um recorde histórico. No entanto, a operação teve um custo humano elevado: 64 pessoas morreram, incluindo 4 policiais, além de dezenas de feridos. Mesmo assim, o feito não superou a marca simbólica e numérica de 2019.
A comparação entre as duas operações expõe mais do que números: revela o modo como o poder escolhe o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Em 2019, as armas foram encontradas dentro de um bairro residencial, ligadas a personagens de alta relevância pública. Em 2025, as armas foram encontradas nas favelas, territórios historicamente criminalizados e visados por operações de grande impacto. Um mesmo problema — o tráfico de armas — tratado de formas diferentes conforme o endereço onde ele se manifesta.
A apreensão do Méier permanece como o episódio mais expressivo em quantidade de fuzis apreendidos numa única ação no estado. Mas mais do que isso, tornou-se um símbolo de como a seletividade da memória coletiva também opera na segurança pública. Quando o poder toca figuras próximas de elites políticas e instituições, o barulho é rapidamente substituído por silêncio. Quando o alvo está nas periferias, o espetáculo é amplificado, filmado de helicóptero e narrado em tempo real.
Entre as caixas de munição encontradas em 2019 e as estatísticas recordistas de 2025, há um país que ainda não conseguiu enfrentar o cerne do problema: o caminho das armas. Elas não nascem nas favelas, nem caem do céu. Percorrem estradas, portos e fronteiras. Passam por mãos que têm licença, influência e poder. A maior apreensão de fuzis da história do Rio continua sendo a do Méier — não apenas pelo número impressionante de armas, mas porque expõe, em sua própria omissão, a dificuldade de enxergar o crime quando ele se aproxima do poder.


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